Por motivos que me ultrapassam, todos os anos as televisões portuguesas (os três maiores canais, sem excepção) resolvem debitar uma série de horas sobre o grande embuste nacional – conhecido como “as aparições de Fátima”. Todos os países têm algo que roça o mítico mas que no fundo é um embuste – a Espanha teve a “Invencível Armada” (que não era espahola e que não era invencível), a Alemanha diz ter a melhor cerveja do Mundo (não tem, de maneira nenhuma), a América Latina tem o Che Guevara e seguidores (até o mito mais sólido é destruído quando recorre aos pelotões de fuzilamento) – Portugal tem as “aparições de Fátima”.
O que me chateia no meio de tudo isto é que Portugal é um estado laico, segundo a constituição (que é apenas a lei fundamental do país) e quando vemos a televisão pública (os privados que mostrem o que querem, se o mercado é rei nós podemos ver com mais facilidade que eles não prestam) a desperdiçar horas e horas com transmissões sobre inaugurações de igrejas – porque não mostram, já agora, inaugurações de sinagogas, mesquitas, templos hindus e centros comerciais? - e com historietas de russos que dizem dever a sua vida à sua fé nas “aparições de Fátima”, já para não falar do tempo de antena oferecido à igreja católica e que esta utiliza para lançar a sua propaganda, o que temos à frente dos nossos olhos é uma distorção daquilo que se conhece como “serviço público”.
Pior ainda, as chamadas “aparições de Fátima” são baseadas em testemunhos que de credíveis não têm rigorosamente nada e que resultam de uma hábil manipulação por parte da igreja católica – como eu já aqui referi há alguns tempos, trata-se da maior multinacional do mundo, possivelmente terão o melhor departamento de marketing do mundo – que fez coincidir um evento de carácter popular com a iminência da revolução de Outubro e com o regime republicano e anti-clerical português. No entanto, cada vez que são abordadas pelos media, são dadas como algo inquestionável. Referem-se sempre a elas como as “aparições de Fátima” e qualquer tentativa de discussão e/ou desmantelamento do embuste está fora da cobertura – para todos os efeitos, é-nos apresentada como uma verdade una e sólida, tão certa como a Terra andar à volta do Sol (coisa que a igreja demorou algum tempo a assimilar, o Galileo que o diga).
A conclusão é esta – a igreja aceitou uma laicização aparente do estado e da sociedade portuguesa, reduziu o seu peso político de jure e não levanta grandes ondas sobre a liberalização do aborto. No entanto, parece ter exigido algo em troca – e a mim parece-me que se trata da incorporação das chamadas “aparições de Fátima” na História de Portugal , como forma de manter presente a “consciência católica” da maioria dos portugueses e não colocar em risco uma das últimas réstias de religiosidade que a generalidade dos portugueses ainda mantém dentro de si. Em Portugal não abundam os católicos praticantes e o número de pessoas a frequentar as sessões de endoutrinação/propaganda (conhecidas vulgarmente como “missas”) decresceu consideravelmente ao longo dos últimos 30 anos. Contudo, o “factor Fátima” está presente numa camada substancial da população portuguesa e se ainda existe alguma ligação forte entre essa camada da população e o fenómeno religioso, é devido ao teatro montado em torno de três miúdos que há 90 anos afirmaram ter visto uma imagem mais brilhante do que o Sol (e nem sequer ficaram cegos...”milagre”, diz a igreja....mas essa é a desculpa do costume), a partir daí tratou-se de gerir a dinâmica que o fenómeno criou e este acabou por engolir uma parte vital da consciência nacional. Num país onde a maior parte das pessoas prefere rezar a imagens (idolatria, coisa que os protestantes abominam) e a figuras específicas do que à divindade suprema da religião que seguem, a igreja soube forjar um mito que fosse ao encontro das aspirações e dos anseios das pessoas (na altura largamente analfabetas e ignorantes) e estabeleceu uma ligação entre uma grande parte dos portugueses e esse fenómeno conhecido como catolicismo. E dá dinheiro também, não esquecer!
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