Viva a Democracia!
Hoje, 20 de Fevereiro de 2005 temos eleições para a Assembleia da República, [ou para a discoteca Demos Kratia se preferirem]. O momento que a República Portuguesa atravessa torna a nossa participação relevante, quase obrigatória, vou ao ponto de afirmar.
A nossa posição no Mundo como estado membro da União Europeia, democracia parlamentar, país desenvolvido e em crise desde há anos para cá reforçam o dever de hoje irmos depositar o nosso voto.
Apesar de a democracia representativa ter sido instituída na Constituição de 1976 e pautar a forma como a República Portuguesa gere os seus assuntos, tal síntese encontra bastantes dificuldades de se afirmar na mente dos cidadãos Portugueses.
Numa sondagem recentemente efectuada, um número substancial dos inquiridos [cerca de 40% ou mais] afirmava estar descontente com a democracia Portuguesa. Não é difícil de perceber porquê. O sistema democrático em Portugal que substituiu em 1974 um sistema oligárquico autoritário paternalista parece em demasiadas situações resvalar para um sistema de elites, no qual apenas um pequeno número de partidos políticos tem real influência sobre os acontecimentos, tomando as suas decisões numa dimensão paralela às das preocupações da população. Numa visão mais cínica, poderia até dizer que a democracia Portuguesa, entre outras funções, existe para lançar carreiras pessoais, que vão desde o presidente da Junta de Freguesia ao Ministro do Governo.
Após uma breve observação sobre o panorama nacional, rapidamente nos apercebemos que apesar da intenção democrática patente nos documentos legais Portugueses, a democracia Portuguesa parece beneficiar mais aqueles se instalaram à sua sombra do que aqueles que por ela se manifestaram ao longo do século XX. Parece existir uma percepção [muito perigosa, diga-se] que podemos afirmar que existe democracia simplesmente por se realizaram eleições para os órgãos de soberania. Não se realizavam também eleições em bastantes regimes autoritários? É verdade que nestes casos, apenas existia uma lista, ou nos casos em que existiam mais, existia sempre uma variável perturbadora, uma fraude eleitoral ou uma submissão tácita destas à lista do governo.
Em Portugal, o que temos nós? Temos um sistema bicéfalo dominado por dois partidos cuja toponímia nada tem a ver com as suas intenções e ideologias que uma vez os potenciaram, um pequeno grupo de partidos mais pequenos com assento parlamentar e que na maior parte dos casos manipulam inteligentemente as suas posições na AR de forma a cumprirem a sua agenda, nem sempre favorável aos interesses da população [não quero imaginar qual é a proporção] e um conjunto de partidos de expressão residual, cuja pequenez lhes confere, afinal de contas, liberdade para elaborarem programas muito mais característicos do que os partidos ditos "mainstream", cuja delicada posição e intenção de abrangerem franjas cada vez mais heterogéneas do eleitorado não lhes permite afirmarem uma posição clara e vinculativa num grande número de assuntos sensíveis.
Qual é o resultado quando este sistema entra em acção? Apenas pode ser um, uma democracia ineficaz, na qual subsistem problemas que já deveríamos ter ultrapassado, como 8% de população adulta analfabeta, um poder de compra equivalente a 73% da média da UE 25, um 26º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, uma muito provável irrelevância na cena internacional, consequência da ineficácia das nossas classes dirigentes e a dita quantidade de descontentes com a democracia, que serviu de lançamento para este post.
Como é que isto começa, podemo-nos questionar. Não é possível apontar um momento único no qual afirmamos "A partir daqui, a democracia começou a apodrecer", mas podemos apontar algumas causas. A falta de cultura democrática e de civismo por parte de um grande número da população Portuguesa é sem dúvida uma delas. O sistema democrático é visto não como a forma de existir e de gerir os assuntos da República Portuguesa, mas como a realidade que vai potenciar o lançamento da carreira pessoal de um determinado indivíduo. O cinismo existente entre a nossa classe política é de tal forma infeccioso que ao olharmos para as juventudes partidárias, principalmente dos dois maiores partidos, ficamos quase com vontade de fugir, sem esquecer a fatal pergunta "o que vai ser do meu país?". E de onde vem esta falta de cultura democrática que potencia tudo isto? O que é que faz com que a democracia Portuguesa seja maioritariamente um antro de interesses económicos e políticos instalados no poder, cuja área de influência abrange os maiores partidos Portugueses? Porque é que um cidadão com preocupações cívicas pela sua comunidade e pelo seu país encontra dificuldades quase monolíticas pela frente quando tenta derrubar, ou pelo menos contornar o monstro com que se depara pela frente que colocou uma autêntica trela em torno do pescoço da Democracia, que para mim é equivalente à mais sagrada das religiões?
O número de respostas possíveis é quase ilimitado. Eu pessoalmente sou da opinião que não existe uma única resposta para todas estas perguntas, nem uma, nem duas, nem três. Toda esta perversão tem origem num factor, disso estou certo, um factor que sinceramente não sei qual é, mas que potenciou o aparecimento de várias variáveis perturbadoras [tal e qual como nos regimes autoritários] que distorcem a síntese de ideias e de orientações que regem aquilo que nós chamamos de Democracia, o tal sistema que é "o pior à excepção de todos os outros", como uma vez um ilustre senhor afirmou. Não podemos, é certo, observar a Democracia como se de uma experiência controlada se tratasse, a Democracia não é uma síntese estanque que podemos colocar num tubo de ensaio ou observar ao microscópio e nela introduzir novos elementos para constatarmos qual vai ser a sua reacção.
A Democracia está à nossa volta e nós fazemos parte dela, as nossas interacções diárias com todos os agentes da nossa sociedade fazem parte dessa grande síntese a que chamamos de Democracia, sejam quais forem as nossas actividades. Podemos assim afirmar que ao vivermos o nosso dia-a-dia, estamos a tomar parte no processo democrático e é verdade, quer seja ao consumirmos os bens que adquirimos todos os dias, ao entrarmos nas nossas salas de aula, ao desempenharmos as nossas actividades profissionais ou a desempenharmos actividades criminosas que colocam em risco a existência dos nossos concidadãos, tudo isto contribui para a evolução do sistema democrático [que não pode existir como um fim em si mesmo], é a natureza e as consequências das nossas acções que vão na etapa seguinte determinar se iremos ter um impacto positivo ou negativo sobre o sistema democrático.
É por estes motivos que a Democracia é sem dúvida "o pior sistema, à excepção de todos os outros". Vivemos num sistema que nos permite contaminá-lo com o nosso cinismo, aproveitá-lo para satisfazer apenas os nossos interesses pessoais e distorcer os ideais tão desejados pela população. Vivemos também num sistema que nos permite ter a nossa própria voz, aceder a formas de divulgarmos as nossas mensagens pela população, afirmarmos a nossa posição contra o regime de interesses instalados e contribuir para uma sociedade mais justa, na qual nos possamos sentir representados e com um poder político capaz de posicionar devidamente o nosso país no contexto internacional, seja qual for a cor do partido do Governo.
É nisto que reside a essência da Democracia, um vocábulo que vem do Grego Antigo e que significa "poder da população", é sem dúvida o "poder da população" que nós vemos no sistema vigente em Portugal, é o poder de uma parte da população que soube tirar partido da Democracia para satisfazer os seus interesses pessoais ao mesmo tempo que exibe uma máscara de afinidades para com a população que a elegeu, ganhando a sua simpatia, a sua admiração e, o mais importante, o seu voto.
Pode parecer trágico o que eu referi, mas na verdade são estes os motivos pelos quais devemos votar hoje, uma abstenção elevada terá como consequência uma leitura por parte da elite política que irá confirmar e perpetuar os motivos que levam a que cada vez mais Portugueses se sintam desiludidos com a democracia. Uma participação elevada [100% seria o ideal, mas nestas circunstâncias talvez 70-75% fosse muito bom] indicaria não só um aumento da consciencialização dos cidadãos da República Portuguesa como também um sinal crítico destes para com as distorções de que o nosso sistema democrático tem vindo a ser alvo desde que foi instituído.
Abstenção significa silêncio e consentimento, um voto significa uma voz activa e cultura democrática. Por tudo o que eu já apontei aqui, esperemos que os Portugueses se decidam quanto ao que realmente pretendem para o seu país e se estão satisfeitos com a actual corrupção do sistema ou por outro lado, se pretendem mudá-lo.