15.9.04

Evolução

"evolução, s. f. acto ou efeito de evoluir ou evolucionar; sequência de movimentos concertados (de tropas, de navios, de dançarinos, de aves, etc.); sequência de transformações lentas, afigurando-se orientadas em certa direcção; desenvolvimento progressivo; (biol.) transformação lenta ou súbita (mutacionismo) de uma espécie viva em outra. (Do lat. evolutionē-, «acção de desenrolar»)."

Tal é a definição de "evolução" avançada pelo Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, 7ª edição. E julgava eu, na minha ingenuidade, que o movimento intrínseco que nos acompanha desde os primórdios da nossa espécie, se caracterizava por uma evolução constante e visível ao longo dos anos, quer no sentido biológico nas mutações sofridas pelos Humanos ao longo de milhões de anos, quer no sentido da nossa evolução política, económica, social e mental, visível dentro das organizações nas quais nos inserimos, vulgo Estados. Escusado será dizer que eu inseria a República Portuguesa nesta visão.

Ora, desde há umas semanas essa concepção desapareceu da minha vista. Há quem pense que o episódio de telenovela chamado "Barco do Aborto" que decorreu a 12 milhas da costa Portuguesa, no Conselho de Ministros e em salas de Tribunal foi exactamente isso, o executivo entendeu que não deveria deixar o navio entrar em águas territoriais nacionais e assim aconteceu. Eu não penso assim e na minha visão foi uma acção retrógrada, puritana e sem sentido.

Infelizmente, em Portugal não nos livramos do estigma do Estado Novo e da sua visão paternalista, de acordo com a qual o governo tem a responsabilidade não só de zelar pela integridade do Estado mas também de velar pelos códigos sociais vigentes, cujas premissas são observadas no território nacional. Vamos lá deixar os rodeios de lado, todos os Portugueses sabem que se realizam por ano milhares de abortos clandestinos em Portugal, todos nós sabemos que destes abortos, quem não pode pagar para ir a uma clínica fora do país devidamente equipada para os realizar, fá-los em más condições, podendo mesmo resultar na morte da mulher em questão. Ao impedir a entrada do navio, o executivo pretendia impedir a violação da lei Portuguesa. A lei Portuguesa em relação ao aborto proíbe a sua realização exceptuando em casos de perigo de vida para a mãe ou malformação do feto.

De acordo com as informações divulgadas nos meios de comunicação social, o navio iria navegar para águas internacionais onde seria aplicada a legislação do país onde o navio foi registado, ou seja, a legislação Holandesa. O executivo resolveu interpretar este transporte para águas internacionais - bem como uma "previsão" (futurologia....??) de que seriam administradas pílulas abortivas ilegais em Portugal a bordo do navio ainda em águas territoriais Portuguesas – como uma tentativa de violação da lei Portuguesa e então a decisão foi a de proibir o acesso do Borndiep às águas Portuguesas. Mais, foi ainda enviada a Marinha de Guerra para impedir que o navio trespassasse o limite das 12 milhas.
Ora, correndo o risco de me acusarem de não saber do que estou a falar, isto é tão louvável como impedir as viagens das cidadãs Portuguesas que se deslocam a Espanha para fazer um aborto - legal – porque afinal, se estabelecermos a devida analogia, transportar as mulheres até águas internacionais para realizar um acto ilegal em Portugal não será, à face da lei, a mesma coisa do que deslocar-se a um país onde uma outra legislação é aplicável para realizar um acto ilegal em Portugal? Eu não quero ser demasiado pessimista mas não me admiraria nada se durante o período de tempo em que um vaso de guerra da Marinha Portuguesa esteve a velar pela nossa lei, tivessem entrado carregamentos de droga ou até contingentes de imigrante ilegais pela via marítima. Parece-me que há ameaças bem maiores à segurança nacional do que um navio equipado com uma clínica onde se realizam abortos. É perfeitamente conhecido que os meios de que um Estado dispõe nunca são suficientes para atender a todas as prioridades, logo, fará todo o sentido definir quais os pontos a que o executivo deverá atender em primeiro lugar. Por isso, eu questiono seriamente a avaliação de prioridades feita por este executivo neste caso mediático.

Este caso, digno de uma telenovela ao qual só falta acrescentar um triângulo amoroso envolvendo Paulo Portas, a Holandesa dirigente da organização Women on Waves que é proprietária do navio e Francisco Louçã (não sei muito bem como é que os laços seriam estabelecidos, usem a vossa imaginação...) foi uma forma de o novo governo mostrar ao país que leva a sério a sua observação da lei Portuguesa. Não poderiam ter pelo menos escolhido uma lei um bocadinho menos retrógrada para impor?

Talvez o que se passou até tenha sido uma evolução, afinal, houve um movimento concertado de navios e de tropas em torno de algo, não foi? A utilização do conceito "evolução" afinal, tem tanto de sarcástica como de verdadeira!

PS: Este post foi aqui colocado deliberadamente num dia em que o dito caso já arrefeceu e surge nos media Portugueses apenas como uma leve reminiscência do passado recente.

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