13.6.05

"Lá vai Lisboa" e aqui fico eu...

Ontem foi aquele dia do ano em que ser lisboeta se torna um fardo pesado e quase vergonhoso, mesmo quando não se contribui com rigorosamente nada para o sucedido numa importante artéria da cidade.
Que o feriado municipal de Lisboa seja dedicado a um santo católico é algo que até já comecei a tolerar, afinal de contas é impossível determinar um nexo lógico entre o 12 de Junho e o senhor António a quem o dia é dedicado, julgo que no século XIII o cálculo dos dias não era muito exacto.
O que torna a noite de 12 para 13 de Junho algo verdadeiramente embaraçoso para qualquer lisboeta que se preze é o acontecimento "popular" e "tradicional" que decorre na Avenida da Liberdade [sim, aquela que nós com todo o orgulho anunciamos como sendo 3 centímetros mais larga que os Champs Elysées de Paris!] conhecido como "Marchas Populares" onde as colectividades dos "bairros populares" de Lisboa apresentam uma série de residentes vestidos com uns fatos que parecem ter saído de uma ala obscura do Júlio de Matos e que não seriam concerteza práticos para utilizar nos transportes públicos.
Ontem dediquei-me a ver cerca de metade da transmissão da TVI [por causa disto vou ser obrigado a flagelar-me até conseguir ver os ossos, porque ver a TVI é algo que tem de ser severamente punido] narrada pelo ícone das piores transmissões da televisão Portuguesa, Manuel Luís Goucha [a concorrência neste sector é feroz, bastar ver as três penosas horas de emissão na RTP 1, SIC e TVI entre as 10:00 e as 13:00] que mostrou ser um profundo conhecedor do folclore da capital Portuguesa ao chamar às marchas uma "tradição com 70 anos".
Logo para inaugurar a galeria da vergonha alfacinha, as marchas "populares" não são tradição de espécie alguma, longe disso. As marchas "populares" assim o são devido à propaganda do Estado Novo e à acção do Secretariado Nacional de Informação, dirigido por António Ferro [um órgão próximo daquilo que seria um Ministério da Propaganda] que em 1932 implementou esta ideia de forma a acentuar o carácter pseudo-patriótico, retrógrado e paternalista do recém instaurado regime, através de uma celebração de carácter popular com a qual "o povo" conseguisse estabelecer uma afinidade e servir de base à campanha nacionalista do regime, algo em que não fomos de forma alguma pioneiros.
Partindo de uma celebração "popular" onde os aspectos mais atrasados de Lisboa eram enaltecidos e "lavados" como algo pitoresco e tradicional [pregões e afins...] o regime deu o seu aval às marchas de Lisboa, realizadas na noite de 12 para 13 de Junho, apresentadas como um evento para toda a cidade e toda a família, cumprindo assim com a trilogia sagrada do Estado Novo – deus, pátria, família. Desta forma, o "povo" mantinha-se entretido e feliz, contrariando assim a perspectiva de que um estado corporativo como o Estado Novo beneficiaria apenas alguns oligarcas protegidos pelo regime e que apresentava preocupações com as camadas populares [sobretudo se estas mostrassem tendências marxistas...]. O ênfase dado no que de pior havia em Lisboa encaixa perfeitamente na cosmogonia do Estado Novo e na sua matriz de um Portugal pobre mas independente, no qual a trave mestra da existência é o quotidiano "simples e pitoresco", representado nas letras das músicas que pautam o desfile de cada bairro "popular" de Lisboa.
A apresentação de Lisboa como uma amálgama de bairros populares, cada um com as suas letras, os seus fatos e os seus "costumes" faz também parte da estratégia de 1932, mostrando assim com todo o orgulho que Portugal era um país onde as tradições eram respeitadas, celebradas e não morriam. Ao ver as marchas de ontem e ao ler as letras [tive que as ler, os participantes cantavam tão mal que não percebia absolutamente nada, mas a sempre preocupada TVI exibiu as letras no rodapé!] só tinha uma ideia na cabeça "eu não sou desta cidade!". Claro que num sentido metafórico, nunca deixei de ser de Lisboa e é preciso mais do que uma saloia manifestação anual de involuntário saudosismo popular do Estado Novo, lavada e apresentada como "tradição" para me afastar da capital Europeia que é Lisboa.
Cada bairro apresenta uma síntese do seu quotidiano de há 70, 80, 90, 300 anos atrás. Este ano, o terramoto de 1755 foi um tema recorrente a quase todas as marchas. Logo a primeira, a marcha infantil da Voz do Operário, mencionou o sucedido e eu fiquei logo cheio de vontade de ver um terramoto inteiramente localizado na Avenida da Liberdade a engolir os participantes e a tribuna [a autarquia era engolida em peso pela estrada!], depois isso passou e eu apenas desejei que caísse uma enxurrada súbita, toda ela localizada na Avenida da Liberdade e que varresse aquela tão bela demonstração de orgulho alfacinha...
Mas voltando ao conteúdo, as letras de cada bairro mostram assim o pior que havia em cada um deles na época à qual a sua canção remonta, através de uma matriz totalmente branqueadora e que faz um sítio onde no século XX não havia luz eléctrica nem água canalizada, onde as mulheres carregavam com cestas de 20 kg de comida à cabeça e berravam frases insuportáveis para os vender e onde as ruas formam um labirinto que os isolava do resto da cidade, um bairro pitoresco do qual somos saudosos. Isto nos casos onde o tema remonta à primeira metade do século XX. Se dúvidas houvesse sobre a fórmula do Estado Novo aplicada a esta celebração, julgo que estejam esclarecidas.
Que fique claro, isto só me irrita porque sou de Lisboa e porque acho patético que no século XXI se celebre através de uma cortina de fumo que tudo branqueia uma manifestação de propaganda do Estado Novo, que faz a década de 1930 e 1940 parecerem cenários idílicos. Será isto uma prova da pobreza cultural e da falta de discernimento de uma parte substancial dos portugueses, agravada pelo facto de se passar na capital, supostamente o local mais dinâmico do país? Eu gostaria de pensar em Lisboa como uma verdadeira capital Europeia do século XXI, consciente do seu passado histórico mas voltada para o futuro. Podem-me acusar de ser radical quanto a isto e de dizer que as marchas são a única altura do ano em que Lisboa regressa ao passado, mas se para fazermos isso é necessário recorrer a uma estrutura reminescente do Estado Novo e vermos cada bairro "popular" através da lupa Salazarista, nesse caso o passado não me interessa.
A propósito, quem foi o iluminado que escreveu que Lisboa tem 750 anos? Se Lisboa tivesse 750 anos, como a letra da "marcha de Lisboa", comum a todos os bairros, afirmava, a conquista de Lisboa aos Mouros nunca teria ocorrido em 1147! Não é preciso nenhum génio para ver isto, quem foram as mentes brilhantes que deixaram passar esta idiotice?? Será que é necessário chegar ao pé dos senhores organizadores e dizer-lhes ao ouvido: "Pssst, Lisboa tem cerca de 3000 anos. Já cá estiveram fenícios, gregos, romanos, visigodos, mouros, vikings, portugueses e conseguiu sempre reinventar-se a si própria. Aliás, até consta que já se chamou Olissipo e Felicitas Julia, e não foi há 750 anos".
Lá vai Lisboa...mas eu não!

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

como sempre, observaçoes excelentes...mas confesso que se nunca liguei nada às marchas senti falta da celebraçao do Santo Antonio em alfama se bem que no bairro aqui ao lado da minha residencia tb tenha uma celebraçao que consiste em uma semana de festa com comidas, idas a igreja de santo antonio e andar de fato regional das madrileñas - teve realmte a sua piada mas nao ha nada como o Santo Antonio de Lisboa!! Bjs joana

13 junho, 2005 18:46  

Enviar um comentário

<< Home


Click Here