30.4.05

O que somos nós?

Como qualquer outra cultura que se digne ao estatuto de definir uma nacionalidade e que pretenda aspirar à formação e manutenção de um Estado próprio, a cultura Portuguesa é dinâmica e passou por várias transmutações.

Actualmente, apesar de estarmos no século XXI, continuamos agarrados ao estigma cultural mais estupidificante e abominável da Europa Ocidental. Pelo que eu depreendi dos conceitos mais comuns e menos académicos de cultura Portuguesa, para que eu me pudesse integrar nesta construção teria de corresponder, pelo menos em parte relevante, ao seguinte protótipo:
- ser católico, é condição fundamental para um Português! Quanto ao cumprimento dos preceitos, isso já é menos relevante, visto que poderia apenas ir a uma igreja uma vez por ano
- tendo em conta a minha idade, ainda não estou em fase de desenvolver uma barriga de vinho tinto, coiratos, bifanas [de notar que o Microsoft Word não conhece as palavras "coiratos" nem "bifanas", isto é muito desrespeitoso para Portugal!] e sardinhas assadas, mas estou em idade de passar os fins de semana num qualquer buraco por onde sai um som idiota que faz toda a gente na sala começar a contrair uns espasmos suavizados. Tradução: deveria passar os fins de semana numa discoteca, perdão, na night, assim é que se diz em bom Português, a dançar uns produtos de plástico versão áudio que um Humano sem qualquer capacidade artística acrescentou um batida primitiva e capaz de arrastar hordas de Humanos para esses espaços onde se larga um dinheirão para passar um grande secão. Normalmente esses produtos áudio são acompanhados por vozes de língua castelhana ou portuguesa com pronúncia brasileira, mas isto não impede que não as haja noutras línguas. Em 2004, o romeno tornou-se uma delas...
- estar filiado numa "jota", de preferência JS ou JSD, porque todos os Portugueses sabem que para nos safarmos [conceito quasi-místico que na prática reflecte uma situação em que um indivíduo se encontra num emprego no qual recebe um pagamento avultado e com um estatuto que lhe permite elevar-se acima da ralé, cujos benefícios incluem o papel de variável perturbadora do sistema, para pior...] temos de ser membros de uma jota, para quando crescermos podermos ser como o sôtor presidente da câmara lá do sítio!
- ser uma criatura perfeitamente misógina para quem, apesar da capa de modernidade que o consumismo trouxe nas últimas décadas, uma mulher não é uma pessoa que gostaria de ter em posição de vantagem sobre mim, quer na vida privada, quer na vida pessoal.
- ainda a propósito do género feminino, a partir de uma certa idade é culturalmente correcto referirmo-nos à namorada/esposa como "a patroa", justamente para reflectir essa posição de vantagem que ela detém e que não nos agrada nada: eu nunca ouvi a expressão "patrão" com uma conotação positiva, porque é que "patroa" haveria de a ter?

- ser adepto de um clube de futebol, desde que este seja o SL Benfica, o Sporting CP ou o FC Porto, mesmo que não se perceba nada de futebol, não interessa.
- quando temos carro, devemos sempre estacionar ou em cima do passeio, ou se não for possível, o mais aproximado de perturbar a circulação dos transeuntes. Eu não tenho carro, por isso apenas posso dizer "paciência" para mim próprio. Se por acaso for atropelado quando estava a contornar um carro no passeio, enfim, lá se vai andando! [expressão simples mas totalmente unificadora da metafísica do povo Português desde há uma grande quantidade de décadas!]
- ao marcar um compromisso, devemos dar sempre uma margem de manobra mínima de 30 minutos [a máxima vai até 2 horas], visto que, se o[s] indivíduo[s] com quem nos vamos encontrar partilhar[em] a cultura Portuguesa, também é provável que o faça[m]! Afinal de contas, o que é que são 40 minutos de atraso? Já olharam para as infraestruturas Portuguesas? Estão atrasadas muito mais de 40 minutos!
- desenvolver uma percepção única do seu país e da sua nacionalidade. Esta complexidade dualista, qual Yin-Yang da cultura Portuguesa expressa--se numa superiorização face a qualquer outro país no que diz respeito a determinados assuntos [nesta categoria encontram-se: clima, mulheres, homens, comida, bebidas, simpatia, capacidade de desenrascanço, esperteza saloia] e numa inferiorização doentia no que diz respeito a outras categorias [a saber, ordenados e pagamentos, qualidade de vida, infraestruturas, ou melhor, estradas, que representam 90% das infraestruturas que os Portugueses conhecem, serviços públicos, governação, nível da intelligentsia].
- ainda em ligação com o aspecto anterior, desprezar o pior que Portugal tem quando rodeado por compatriotas e explodir de fúria quando a mesma coisa é afirmada por um estrangeiro, mesmo que ele esteja coberto de razão. Afinal, porque carga d’água há de um Japonês vir-nos dizer que não somos suficientemente competitivos?? Se não gostas volta para a tua terra! E porque há de um Sueco dizer que o Estado Português não aplica a receita fiscal de uma forma correcta?? Se não gostas volta lá para o frio do teu país e não chateies, mas o que é isto?!
- no que diz respeito à democracia, o Português é fervoroso na defesa do 25 A e a apregoar a queda do fascismo [engraçado, visto que este exerceu o seu poder em Itália, entre 1923 e 1945], para depois cuspir na face do sistema democrático e defender a pena de morte, as cargas policiais sobre manifestações pacíficas, a formação de milícias populares contra um suspeito de um crime socialmente inaceitável [não tem de ser culpado], subornar um agente da autoridade e defender o sistema de ensino do Estado Novo, visto que no tempo do shôtor Oliveira Salazar é que se aprendia.
- ainda em relação à política, deveria afirmar que eles são todos iguais e que eu não sou como eles, mas que devido ao sistema que eles impõem, tenho que fazer o que eles dizem senão nunca vou ser ninguém.
- aceitar, sem qualquer questionamento e sem hesitação de espécie alguma o "milagre" de Fátima. Afinal, a mulher apareceu aos miúdos e foi assim! Ah, já agora, também ajuda a integração plena na cultura Portuguesa se fizermos algumas viagens ao parque temático construído no local.
- afirmar-me como um "macho lusitano" também ajuda. Apesar do avatar do mítico "macho lusitano" ter sofrido modificações nas últimas décadas [hoje em dia já não é tão sedutor ser como o Zézé Camarinha], o conceito e toda a metafísica por detrás deste continua alive and kicking! Hoje em dia, o "macho lusitano" engloba um número de indivíduos que têm um [bom] carro, de preferência modificado que utilizam para chamar a atenção dos membros do sexo oposto – tal como um pavão utiliza as cores da sua cauda para atrair as fêmeas – frequentam os referidos anteriormente espaços de diversão nocturna, mostram total fidelidade à sua companheira quando estão ao seu lado mas entre o círculo de amigos [todos eles também "machos lusitanos"] elaboram um complexo círculo mental de fêmeas que consideram ser merecedoras de toda esta virilidade e com quem, eventualmente, muitos deles acabam por a transmitir à gaja sem que a companheira de compromisso saiba disso [o pior é quando ela descobre, lá se vai a "virilidade"...], apetrecham-se com um aparelho pequeno e cujo preço chega a atingir os 500 Euros mas que lhes permite realizar maravilhas como transferir dados, utilizar a internet, fazer downloads de ficheiros, enviar faxes e emails que depois desperdiçam a tirar fotos de baixa qualidade [1.2 megapixels?? Estão a rir-se de nós!] que não hão de servir para nada, a enviar sms onde mostram os seus conhecimentos da língua Portuguesa [do género: "Oi,td bem?Hj vou ao colombu c/amgs,krs vir cmg?se ksrs,da 1toke ka gent vaite bscar,hasta,bjinhux" para depois dizerem que os brasileiros não sabem falar...], a dar toques aos amigos ou a desperdiçar horas a falar sem dizer nada, colocam 2 quilos de gel por dia no cabelo, se o orçamento permitir vão ao solário para ficarem com aquela pele laranja que mais parece saída da visão de um daltónico, compram aquelas roupas "da moda" mas depois dizem que "andar arranjado" é coisa de larilas, e tentam incessantemente mostrar que têm mais conhecimentos e sentimentos do que qualquer outro, apesar de apenas cinco minutos depois de abrirem a boca se tornar óbvio que aquilo é uma forma de o cérebro nos dizer que tem cerca de 1200 cm3 de espaço para alugar a preços bastantes acessíveis, devido à forte concorrência neste sector representada por todos os outros concorrentes ao título de "macho lusitano do ano".
- afirmar que nos meses do verão, o Português é rei da praia! Afinal de contas, nós somos Portugueses, como tal, somos praticamente imunes às radiações solares, o sol não nos faz nenhum, ao contrário desses camones que vêm lá da Inglaterra, da Alemanha e da Suécia e que ficam logo encarnados como lagostas depois de uma hora ao sol! Nada disso, o Português aguenta sem protector solar as radiações do astro rei com toda a calma do mundo. Paralelamente, é engraçadíssimo verificar que apesar deste distanciamento em relação aos povos que vivem apenas a 2 horas de distância para norte, demarcamo-nos imediatamente dos povos Árabes, desconfiem deles, não são boa gente!
Já vamos num estado bastante avançado. No entanto, esta identidade não seria Portuguesa se ficasse por aqui, espero as vossas contribuições para esta lista, bem como as vossas apreciações quanto ao que aqui escrevi. Para breve, um texto subordinado à cosmogonia do típico português!
Como nota final, a nós que não temos nada a ver com o que eu escrevi [pelo menos eu sei que não tenho], seremos nós Portugueses? No que diz respeito ao conceito de "cultura Portuguesa", onde termina o sentimento de pertença a Portugal e começa a ligação aos atavismos que décadas depois são ressuscitados e muitas vezes forjados ao serviço de interesses maiores? De uma forma ainda mais trágica, o que leva a que as situações que eu aqui escrevi sejam consideradas como manifestações de cultura tipicamente Portuguesa?
Serei eu Português? O meu BI e o meu passaporte assim o afirmam, mas estes não passam de documentos escritos. O que me vai no coração e na cabeça é bem mais complexo e não me permite afirmar com toda a certeza o que eu sou. Digamos que, para todos os efeitos legais, sou um cidadão da República Portuguesa. Mas a cultura de um povo vai muito além do que os seus documentos legais indicam, quais serão as implicações, positivas e negativas, por detrás da portugalidade? E porque deixamos nós que a síntese designada como "cultura portuguesa" não seja mais do que uma manifestação de ignorância, falta de discernimento, estupidez [arrisco dizer], mesquinhice, conformismo apático e desinteresse total por tudo o que não conhecemos?

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Depois de ler este texto, fico a pensar k realmente n pertenço a este país (aliás, esta é uma ideia k já me persegue há bastante tempo, pelo k as tuas ideias só vieram confirmar, desgraçadamente, o meu estado de espírito...). O grande problema é k a maior parte dos portugueses não se identifica com estas características, mas não fazem nada para mudar a ideia k transmitem...
Bem, depois destes desabafos, devo dizer k nem sequer é preciso ir à Igreja uma vez por ano (a não ser k se seja candidato a presidente da junta ou d outra coisa qualquer e as eleições estejam à porta...), basta apenas defender com unhas e dentes os dogmas da Igreja sem se questionar, do estilo, e isto é meramente um exemplo,eu sou contra o aborto, o que não quer dizer k já n tenha feito um! Mas isso é um pecado mortal (só n se aplica, evidentemente,à minha pessoa).
Quanto á filiação nas jotas, é necessário dizer k isso n significa um comprometimento vitalício. Quando a oposição estiver melhor colocada para oferecer um tacho, muda-se de cartão de militante e arruma-se o assunto (sim, o vira-casaquismo é também uma característica bem portuguesa)!
Continua com estes textos bem interessantes k nos fazem reflectir (eu bem digo k erraste o curso, devias ter ido pra filosofia! Mas ainda estás a tempo)
Jokas

01 maio, 2005 13:18  
Anonymous Anónimo said...

Ser português, ora aí está um bom tema de conversa...

Gostaria de afirmar, em primeiro lugar, que me sinto portuguesa enquanto patriota que sou (bem, alguns diriam que isto é coisa de "fascisóide"... o ideal mesmo é não gostar de Portugal a não ser quando há campeonatos de futebol).
Como boa portuguesa, sou benfiquista (todo o bom chefe de família o é e cada vez mais se associa, infelizmente, os benfiquistas aos portugueses típicos dos bigodes, barriga da cerveja e com a certeza que seriam melhores que os treinadores...).
Também me identifico com um partido político, porque, ao contrário da maioria, preocupo-me com o país (muitos acham que são "balelas", não é?), gosto de política e considero que isto não é só de mentirosos!

Todavia, não sou católica, sou bem ateia. Isto, sim, já faz de mim uma herege digna de viver na França, por exemplo, país que odeia os religiosos, dizem...
Além disso, acho até que a bandeira de Portugal devia ser azul e branca - agora já não sou fascista mas monárquica, dizem os mesmos traumatizados pelo fascismo em Portugal. Na verdade, admiro muitíssimo quem combateu Salazar, a repressão, etc, mas diria que, por exemplo, a Ponte 25 de Abril não deveria ter esse nome... Agora já deveria ser presa!!!

Pois bem, acho que muitos estão baralhados... "Quem é a Isabel, afinal?" ;)

02 maio, 2005 11:00  
Anonymous Anónimo said...

Antes de mais começo o meu comentário por me identificar: Português, Benfiquista (não no sentido latop da palavra - como te compreendo Isabel), Ateu, pouco amigo da night, inimigio do coirato e da sardinha assada, convicto defensor de que um pouco de ketchup no 25 A teria produzido uma verdadeira democracia e não a demoignorância, o democatolicismo e o democinismo em que actualmente tentamos sobreviver, ferveroso defensor das jotas como meio de acção civíca e não como ritual iniciático para qualquer tipo de introdução no "métier" de paineleiro...
Ah, e convencionou-se que me chamaria Rui Santos...o que provavelmente fará de mim mais judeu do que católico, mas mesmop assim mais marroquino do que judeu;)...
João, copncordo com muitas das coisa que dizes, admirando a frontalidade e a radicalidade da forma... compreendo a insatisfação e o desespero por um sentimento que muito provavelmente te une a muitos daqueles que pensarão que Portugal está entregue à bicharada... Todavia eu tenho para mim que o retrato que fizeste corresponde mais a um Portugal que adora a mesquinhez, a submissão e nacionalismo atávico do que ao Portugal que eu julgo ser a minha Pátria - nesse Portugal o orgulho na multiplicidade das nossas raízes é maior e mais vivo, as jotas não passarão de círculos civícos de jovens que comungam a generalidade de pontos de vista e trabalham em prol da comunidade com base neles, em que ser do benfica não corresponde a ser saloio, estúpido e mtas vezes bimbo..., em que o melanoma é uma procupação e não uma com+petição nacional... em que nos orgulhamos do que som e temos o discernimento de aceitar os nossos defeitos e as nossas virtudes, corrindo os primeiros e fortalecendo as segundas... em que as médias cidade existem e são polos de atracção para as populações... em que os PDMs e os Planos de Promenor são respeitado e não mudados pela luz refletida pelo tacho...
Detenho-me! Espero que continues a lançar estas farpas com a ahabitual astúcia e perícia
Um grande Abraço,
Rui Santos

03 maio, 2005 11:11  
Anonymous Anónimo said...

Em primeiro lugar queria dizer q acho a tua critica acutilante como de costume;nao me identifico nem um pouco com o retrato q fizeste do espirito tipico portugues(sou ateia,nao sou benfiquista,nao pertenço a nenhuma jota,nao gosto de coiratos,nao tenho grande estima por engenhocas electronicas-megapixels para mim é chines- e ponho imenso protector solar quando vou a praia) mas reconheço que existe muita gente a quem isso assenta como uma luva.No entanto,nao queria deixar de dizer que estar no estrangeiro mudou imenso a minha perspectiva das coisas e devo dizer que tenho imenso orgulho em ser portuguesa!Sim,eu sei que ha muita merda no nosso pais,que esse espirito que descreveste se reflecte a nivel institucional e infraestrutural(com a pouca qualidade a que estamos habituados)mas ainda assim quando me perguntam de onde sou eu tenho o maior orgulho em dizer e tento ao maximo vender uma boa imagem do meu pais,pois apesar de saber que esta longe de ser perfeito e que a qualidade de vida podia ser bem melhor(apesar de eu nao me poder queixar),acho que esta nas maos da nossa geraçao,isto é,daqueles que como tu,se apercebem da realidade,por vezes triste,com que nos deparamos na Tuga,mudar as coisas.Eu acredito que as coisas podem ser mudadas-é claro que ninguem nos tira a melancolia e o espirito que nos faz cantar desde 1143(perdoem-me se erro a data,nao é por falta de patriotismo)-e que esta nas nossas maos faze-lo!Nao sei se tenho uma visao demasiado romantica das coisas,mas continuo a achar que o dinheiro move o mundo mas ainda ha espaço para o sonho comandar a vida.Sei que sozinha nao consigo fazer uma diferença visivel,mas nao é por isso que vou deixar de agir como alguem que acredita nas coisas boas que temos e que nao cruza os braços defronte ao panorama de inercia nacional e acho que se todos o fizessemos talvez ao fim do dia notassemos alguma mudança...

05 maio, 2005 11:32  

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