23.11.04

Neo-feudalismo

Aqui vai um copy paste do meu último texto para o Observatório, sim, sou demasiado preguiçoso para escrever uma entrada minimamente de jeito aqui e agora.
Cá vai disto...

O estudo actual das Relações Internacionais informa-nos que os actores dominantes da dinâmica internacional são os Estados soberanos, sem descartar o papel relevante das instituições internacionais, dos poderes erráticos e dos poderes transnacionais, também eles actores no panorama global.
Contudo, é do conhecimento público que um grande número de Estados, apesar de deterem soberania de jure sobre o seu território, interesses e organização, são de importância quase insignificante quando colocados ao lado do poder – entendendo-se neste caso o conceito de "poder" como "capacidade de influenciar" – das correntes transnacionais, sobre as quais recai um protagonismo cada vez maior, impossível de ignorar neste Mundo cada vez mais globalizado.
À excepção da participação nas organizações intergovernamentais, os Estados mais pequenos e mais pobres do Mundo encontram-se diminutos face ao crescimento exponencial das multinacionais – a face mais visível destes poderes transnacionais – no último século e que não parece terminar no Século XXI.

A História diz-nos que já existiu uma situação análoga a esta, muito antes do contexto em que nos inserimos ter tomado forma. Durante a denominada "Era Medieval", o poder político, como o entendemos hoje, englobava um número diminuto de competências que recaíam inevitavelmente sobre o monarca, dado o número reduzido de assembleias parlamentares e de instituições nos moldes que hoje existem. Foi neste contexto que o Ocidente viveu sob um sistema feudal, onde a soberania sobre o território do reino era decomposta em vários feudos, deixados sob a autoridade de um denominado "senhor feudal" que se encarregava da administração das terras do seu feudo e que por sua vez, dispunha de vassalos nos quais delegava determinadas competências, estes tinham as suas obrigações – essencialmente fiscais e militares – perante os seus suseranos. Assim se caracterizava, em traços essenciais, o sistema feudal que vigorou no Ocidente durante mais de um milénio, marcado por uma ausência do poder político do monarca, cujo protagonismo recaía principalmente na colecta de impostos, na atribuição de terras à nobreza, nas decisões sobre a guerra e a paz – note-se que os conflitos durante a Era Medieval tinham características diferentes das de agora – e na obediência ao Papa no que diz respeito à entronização e questões religiosas.

À Era Medieval, sucedeu o Renascimento do final do século XV e no século XVII, a Guerra dos Trinta Anos e o Tratado de Westphalia marcaram o desaparecimento da ordem então vigente na Europa Ocidental.
As décadas que se seguiram foram marcadas pelo reforço do poder do monarca em cada Estado, pelo crescimento do Absolutismo como doutrina dominante do panorama político Europeu e pelo desenvolvimento do sentido de Estado soberano, algo que foi reforçado a partir de 1789 com a consciencialização dos povos para as questões políticas, o final do absolutismo do monarca e a redefinição do panorama político Ocidental, marcado pela ascensão do nacionalismo e liberalismo político em toda a Europa e no continente Americano.

Os políticos e ideólogos da época consideravam o período Medieval como uma era bárbara e procederam a um enterro desse passado histórico, sem no entanto deixarem de manipular uma série de mitos da época com propósitos nacionalistas.
O Século XX trouxe uma vaga de independências para o primeiro plano da realidade internacional e novas formas de abordar os assuntos globais emergiam, inspiradas sobretudo no institucionalismo. No entanto, o Século XX foi também o século em que a Humanidade tomou consciência de um fenómeno (também referido como "processo" por alguns) denominado globalização, no qual intervêm, como principais forças motrizes, as empresas privadas e os veículos de projecção cultural, contribuindo (de uma forma muito genérica) para um maior e mais rápido fluxo de capitais, de divulgação de informações, de fusões e aquisições empresariais e de aproximação de pessoas, num Mundo cada vez mais pequeno. Ao mesmo tempo, tornam-se também visíveis as suas consequências negativas, como o dumping social, os problemas levantados pelo outsourcing, a exploração de mão-de-obra nos países em desenvolvimento e a ausência dos seus benefícios em muitos locais do globo.

Tal fenómeno não seria como o conhecemos se a sua principal força motriz tivesse sido o Estado como entidade política. O crescimento das empresas privadas na segunda metade do século XX, aliado a concentrações empresariais de grande dimensão e à criação de economias de escala, tornaram um determinado número de empresas em gigantes económicos, congregados em grupos que juntam empresas do mesmo, ou de vários sectores diferentes, aumentando exponencialmente o seu capital e alargando a sua capacidade de actuação internacional.
Este aumento do poder financeiro das empresas multinacionais, visível através da consulta dos activos financeiros, da capitalização bolsista e dos lucros de empresas referidas como as "Fortune 500" – apenas um exemplo possível – permite-lhes ultrapassar a mera dimensão económica e atingir posições de primeiro plano no desenvolvimento de um Estado soberano. As consequências deste crescimento desmesurado incluem a formação de lobbies poderosos, logo, uma capacidade considerável de alterar a agenda do Estado, constituindo assim uma forma legal de manipular os poderes legislativo, executivo e judicial de forma a satisfazer os seus próprios interesses.

Num contexto de globalização, torna-se assim possível para uma grande empresa extrapolar o seu modelo de actuação dentro do Estado no qual ela se encontra registada para qualquer outro Estado soberano, muitas vezes em promiscuidade com o poder político nas situações de menor transparência.
A referida promiscuidade e influência do sector empresarial sobre o poder político é frequente, quer nos países desenvolvidos quer nos países em desenvolvimento. Podem ser encontrados exemplos flagrantes na História recente: em 1973, a pressão das multinacionais Americanas sobre o poder político levou ao patrocínio dos EUA de um golpe de estado no Chile que derrubou o governo de Salvador Allende e o substituiu por Augusto Pinochet, no Japão o sector empresarial é de tal forma poderoso que a figura do ministro das finanças necessita de uma prévia aprovação oficiosa dos maiores empresários do país, conflitos armados em África subsistiram durante anos devido à pressão de empresas interessadas nos recursos naturais dos territórios em causa.

Exemplos como os referidos colocam em causa o papel do Estado soberano como o actor mais influente das Relações Internacionais e nalguns casos, podemos mesmo falar de uma quase irrelevância do Estado face a uma agenda empresarial suficientemente poderosa para decidir sobre o presente e o futuro de um Estado.
Partindo desta perspectiva, podemos considerar que corremos um risco bastante real de desenvolver uma nova realidade no Século XXI, na qual o poder político vê o seu papel diminuído a questões como defesa, representação externa e política macro-económica (sem esquecer que estas competências não estarão também livres de influências) ao mesmo tempo que assistimos à privatização de sectores tradicionalmente ligados às competências do Estado, como a educação, a saúde e a segurança social – como se torna cada vez mais provável nos EUA, como é cada vez mais comum na China e tendo em conta as pressões que são feitas sobre a União Europeia para reformular o seu sistema social em nome da competitividade.
É a partir destas noções que se torna plausível prever que, ao longo do Século XXI, a realidade dominante em todo o Mundo poderá ser o neo-feudalismo, uma realidade em que o poder político – representado pelo Estado soberano – se encontra cada vez mais vazio de competências e os poderes transnacionais, representados acima de tudo (mas não exclusivamente) pelas empresas multinacionais dispõem de acesso quase ilimitado aos recursos naturais, económicos e humanos num Mundo com fronteiras cada vez mais ténues e onde o seu poder ultrapassa os sectores económico, industrial e comercial, entrando em áreas até então reservadas aos Estados e mantendo, nos estados menos desenvolvidos, uma autoridade em tudo análoga à vivida na Europa durante o período Medieval.

A analogia torna-se ainda mais real quando perspectivamos que neste sistema existe uma relação bastante próxima entre Estado e sector empresarial, permitindo ao Estado transitar algumas das suas competências para o sector privado, ao mesmo tempo que implicitamente lhe confere carta branca para desenvolver a sua própria agenda, semelhante a uma agenda política de um Estado soberano, sem os problemas de índole política que este pode atravessar.
Acima de tudo, trata-se da falência do actual paradigma, acelarado pela globalização – não pelo fenómeno em si, mas pela forma como é perspectivado pelas entidades intervenientes – e que se não for gerido com a devida precaução poderá mesmo levar a choques de consequências por enquanto imprevisíveis entre o Estado e os poderes transnacionais

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