26.3.05

"Oriente - Ocidente, a fractura imaginária"

Recentemente tomei contacto com aquilo a que posso chamar um dos livros mais interessantes que já li até hoje. "Oriente Ocidente, a fractura imaginária" de Georges Corm constitui uma obra inovadora no panorama das relações entre estados, nomeadamente no que diz respeito ao anunciado conflito do século XXI entre civilizações, acima de tudo entre a dita "civilização Ocidental" e a dita "civilização Islâmica", apregoado por Huntington, o autor de "O Choque das Civilizações" e que eu pessoalmente considero como totalmente ficcional e mais digno de um filme do que da realidade, como se as civilizações pudessem ser delimitadas num mapa e as suas componentes rigorosamente estratificadas nas mentes de cada um dos indivíduos que com elas se identificam.
O autor, antigo ministro das finanças do Líbano e considerado como uma figura de relevo no que diz respeito ao desenvolvimento económico, expõe aquilo que no seu entender não é mais do que uma "fractura imaginária" entre o Ocidente e o Oriente, através de uma breve análise, dentro do possível, dos pressupostos e estereótipos que classificam o mundo ocidental e, sobretudo, o mundo islâmico. Na sua obra, é desmantelada a construção de um Ocidente democrático, livre, ponto máximo da aspiração Humana e messiânico, com o principal desígnio de levar a sua "luz" ao "terceiro mundo". A herança clássica, legado das civilizações grega e romana que são a base das chamadas democracias ocidentais, bem como o contributo a partir da Era do Renascimento de sucessivas gerações de ideólogos e pensadores ocidentais cuja expressão atinge o seu auge na Revolução Americana, Revolução Francesa e nas Revoluções Liberais que atravessaram a Europa no século XIX, tudo o que contribuiu para a construção da democracia que hoje conhecemos, liberal, secular, tripartida, respeitadora dos direitos e liberdades de cada um, encontra-se hoje ameaçada por um ressurgimento de cariz bíblico e maniqueísta que se acentuou com os atentados de 11 de Setembro de 2001 e cuja expressão mais visível encontramos no discurso propagado pela Casa Branca [mas não exclusivo do governo dos EUA] através da sua retórica dualista de "bem contra o mal", "civilização contra barbárie", "democracia contra terrorismo" e outras que tão bem conhecemos.
Esta ascensão do espírito de cruzadas, transposto para o século XXI, vai contra tudo o que os nossos antecessores elegeram como prioritário e que esteve próximo da extinção entre 1918 e 1945 devido aos expansionismos nazi, fascista e comunista. O recurso a arquétipos religiosos, de acordo com Georges Corm, apenas esteve adormecido desde 1789 até hoje, o surgimento dos nacionalismos no século XVIII sobrepôs-se temporariamente ao fervor religioso que caracterizou o continente Europeu até ao século XVIII [com uma História sangrenta provocada por divisões e sectarismos religiosos, quer entre cristandade e islão, quer dentro da própria cristandade] para agora ressurgir, ao abrigo de um atentado em grande escala contra o ocidente, cujas circunstâncias e consequências são devidamente manipuladas por interesses políticos e económicos, levando a que sejam postas em prática, nas democracias ocidentais, medidas que seriam inaceitáveis face ao espírito liberal no qual os nossos estados são fundados.
Comecei por referir o Ocidente mas isto não significa que a obra de Georges Corm seja uma crítica devastadora dos actuais líderes políticos ocidentais que o autor culpe por todos os males dos países em desenvolvimento. O mundo islâmico é também alvo de críticas e num plano superior, aquilo que se denomina o "oriente" ou o "resto do Mundo" tendo como ponto de referência o ocidente, considerado por tantos ocidentais como atractivo, exótico, místico e ao mesmo tempo bárbaro, ímpio, selvagem, inculto (!), desrespeitador de tudo aquilo que no ocidente nós consideramos como inviolável [ou considerávamos...]. O autor coloca ao mesmo nível a propaganda elaborada por clérigos islâmicos radicais sobre o ocidente [materialista, imoral, individualista, "grande satã", sem valores, imperialista] com a propaganda que nos últimos anos tem sido difundida pelo ocidente sobre o mundo islâmico [irracional, extremista, furioso, unido contra o ocidente, susceptível de tornar qualquer um dos seus 1200 milhões de membros num terrorista como os que guiaram os aviões utilizados nos atentados de 11 de Setembro] o que, se pensarmos devidamente no assunto, faz todo o sentido, tendo em conta que quer o cristianismo, quer o islamismo fazem parte do mesmo tronco de religiões monoteístas. A crítica aos líderes políticos do mundo islâmico, do mundo árabe em particular, é impiedosa e aponta as que o autor considera como as principais falhas dos países muçulmanos em se modernizarem e construírem regimes democráticos capazes de responderem às necessidades dos seus cidadãos, ao invés de culparem o ocidente por todos os seus males e de alimentarem correntes cujo objectivo é a ruptura da democracia ocidental.

É uma obra que eu recomendo a toda a gente que lê este blog [ou seja, contam-se pelos dedos de uma só mão...], não apenas aos que estudam relações internacionais, trata-se de um livro que não pretende orientar um estudo científico mas é antes uma perspectiva vinda de um indivíduo com conhecimentos vastíssimos sobre o tema tratado e que lida com uma realidade com a qual nós contactamos quase diariamente. Densa mas acessível, quer se concorde quer não, julgo que dificilmente alguém se poderia arrepender de ler esta obra.

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