11.4.05

"God save the Queen"? E a Democracia?

Este fim-de-semana inadvertidamente tive de contemplar parte do anunciado "Casamento Real" no Reino Unido.

O acontecimento foi coberto para Portugal pela TVI, estação que há já alguns anos nos habituou a um estilo muito próprio. Isto significa, obviamente, que já todos sabemos o que esperar do canal com mais audência em Portugal.

Mesmo assim, a estação ainda me conseguiu surpreender com a extraordinária cultura da enviada ao local que relatava o acontecimento para a TVI. Não só a senhora em questão não sabia o nome de Rowan Atkinson, tendo-se referido ao actor apenas como "Mr. Bean" [para mim ele é o Black Adder, mas isso sou eu...], como também afirmou mais do que uma vez que a Rainha Mãe estava presente [ou muito me engano ou a jornalista da TVI descobriu, num golpe de genialidade, como ressuscitar figuras reais falecidas à três anos...] e ainda para coroar tudo isto, ilucidou-nos quanto à natureza da Igreja Anglicana, quando declarou que Henrique VIII havia procedido à separação em relação à Igreja de Roma para que pudesse realizar o seu sexto casamento [quer dizer que em relação aos outros cinco não houve problema nenhum, nem sequer o facto de algumas das infelizes esposas do monarca terem sido decapitadas por este nem os divórcios anteriores, visto que nem todas foram executadas, contribuíram para o cisma com o Vaticano]. Ah, mas os jornalistas da TVI em Portugal não tentaram ofuscar a brilhante actuação da sua colega em Windsor. Um dos quais colocou esta pertinente questão a um representante da Igreja Anglicana no estúdio: "Vocês também rezam o pai nosso como os cristãos?"
Ora bem, é a TVI!
Quanto ao acontecimento em si, não o vou comentar nos moldes da imprensa cor-de-rosa [nunca hão de ler nada disso aqui, garanto-vos], apenas me vou referir a uma contradição reveladora de, no mínimo, uma grande hipocrisia existente nas Repúblicas Europeias, neste caso na República Portuguesa e que está profundamente enraízada na sua consciência colectiva e nos seus media. Qualquer observador minimamente atento repara que as coberturas dos "casamentos reais" são sempre apresentadas pelos media com uma forte dose de romantismo, as casas reais são-nos apresentadas através de um espectro de saudosismo, de idealização, quase de elevação espiritual, tacitamente consideradas como muito acima dos regimes republicanos [cujos faits-divers vendem muito menos tablóides do que os das monarquias].
Ao olhar para a cobertura de um "casamento real", o menos prevenido dos tele-espectadores depara com uma construção remeniscente das lendas medievais, remontando a um tempo em que os monarcas pouco mais eram do que figuras decorativas que tributavam os senhore feudais e em que qualquer príncipe ou princesa era motivo de concentração de olhares por parte do povo. É esta a mentalidade que os media nos impõem quando lidam com assuntos de casas monárquicas. A evolução política do Ocidente ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, o liberalismo político e o avanço das Repúblicas Parlamentares resultaram na diminuição do número de monarquias na Europa - actualmente contam-se Espanha, Reino Unido, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Mónaco, Dinamarca, Noruega e Suécia - e na sua posterior adaptação para regimes constitucionais nos quais o monarca reina mas não governa, limita-se a ser o Chefe de Estado [no Reino Unido chefe da igreja] e legitima a tomada de posse do poder executivo, servindo ainda de representante do seu país [quer dizer, o país nem sempre é o dele...] vis-à-vis outros Chefes de Estado.
Qual é então o motivo por detrás de toda esta poeira vistosa que nos é apresentada nos media aquando de acontecimentos relacionados com casas reais? Será uma consequência necessária, decorrente da própria perda de poder dos monarcas e que tenta encontrar uma última função para estes e para os seus descendentes, ou seja, vender jornais e aumentar audiências televisivas? E os cidadãos, como podem permitir que as casas reais vivam à custa do erário público? No caso do Reino Unido, chega a ser escandaloso. Não estaremos perante uma violação clara dos valores democráticos que nos regem, do liberalismo pelo qual milhares de pessoas deram a sua vida desde a Revolução Francesa e que constitui a base dos regimes políticos Ocidentais?
O circo mediático em relação a "assuntos reais" não é senão um motivo de embaraço para as monarquias Europeias. Na minha óptica, cada circo é uma mancha na reputação e bom-nome do seu país.

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