25.4.08

"O dia da revolução"

Hoje comemoram-se os 34 anos do derrube do regime autoritário que dominou Portugal durante 48 anos e sob o qual viveram e cresceram três gerações de portugueses, (alguns melhor que outros) atravessando algumas das conjunturas mais importantes do século XX, como a Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria.


O regime dominante tinha características anacrónicas para um país da Europa Ocidental na segunda metade do século XX. Uma vez que Portugal foi poupado à Segunda Guerra Mundial e conseguiu equilibrar uma neutralidade colaborante com o Eixo e com os Aliados, o regime pôde manter as suas características e as suas práticas enquanto todos os outros países europeus (excepção para a Espanha, claro) enveredavam por um novo caminho, uns em direcção à colaboração e construção europeia (como aconteceu na Europa Ocidental), outros em direcção a um novo período de autoritarismo do qual apenas se viriam a libertar quatro décadas mais tarde (como aconteceu na Europa de Leste). Na prática, isto significa que enquanto a Europa passava por profundas mudanças que redefiniram os mais importantes aspectos da vida política, económica e social, abrindo caminho para a sociedade pós-industrial em que vivemos hoje, Portugal não só manteve o regime político que se instalara em 1932, depois de um golpe de estado ocorrido em 1926, como manteve os sustentáculos desse mesmo regime: a propaganda, a censura, a política política, o domínio sobre as possessões coloniais (eufemisticamente chamadas de ultramarinas após a adesão de Portugal à ONU em 1955) e, acima de tudo, a mentalidade das pessoas.


Nenhum regime consegue subsistir se tiver todo o país contra ele. O regime autoritário português conseguiu simular um cenário em que fazia crer à generalidade da população que todos os aspectos que lhes eram impostos eram necessários para o “bem da nação” - mesmo que isto significasse ir combater para um território que não conheciam e que não lhes dizia respeito, onde poderiam até morrer e ser esquecidos pelo país que para lá os enviou. E enquanto a generalidade da população se resignava, uma certa “elite” (termo técnico, note-se) com poder para ter influência sobre o país, era recompensada de forma a assegurar a sua colaboração com o regime. Infelizmente para o regime, foi impossível manter a situação, sobretudo com o desgaste que a guerra colonial trazia ao país. O regime apodrecia rapidamente e as únicas instituições que ainda funcionavam em pleno, a PIDE e a censura (suavemente chamadas de DGS e exame prévio, o que mostra que os políticos portugueses sempre souberam dar um aspecto pacífico às piores coisas), representavam as faces mais detestáveis da moribunda situação.


O golpe de estado com sucesso realizado no dia 25 de Abril pôs um ponto final ao poder em vigor, derrubou o aparelho político, encerrou as suas principais instituições e iniciou um processo de democratização que seria concluído em 1986 com a adesão de Portugal à então CEE. Apesar de uma minoria ter tentado, de formas lícitas e ilícitas, colocar Portugal na rota da União Soviética, sobretudo no período que ficou conhecido como PREC e que trouxe momentos verdadeiramente ridículos ao país, tão anacrónicos como o regime que tinha sido derrubado um ano antes.


Porque apresentam então o dia 25 de Abril como a “data da revolução”? Alguém que diz uma coisa destas sabe o que significa “revolução”? De certeza que não, uma revolução não é um evento de um dia em que um regime é derrubado, uma revolução implica um processo longo e sem contornos definidos cujas consequências só podem ser avaliadas a longo prazo. Nenhuma revolução se faz num dia, nem se pode fazer tal coisa apenas com a mudança dos principais intervenientes, e se a história de Portugal nos últimos 34 anos nos mostra alguma coisa, é que existem sectores onde o antigo regime ainda parece existir – o que, se estivéssemos a falar de uma revolução na mesma acepção com que nos referimos à Revolução Americana ou à Revolução Francesa, não seria possível, salvaguardada a devida distância histórica. Ainda antes do golpe de estado de 1974 já existiam, e de forma visível, elementos que se tornaram associados às chamadas “conquistas de Abril” e que se faziam ouvir, apesar das tentativas repressivas do regime. Talvez a forma, algo cínica, com que muitos indivíduos, incluindo alguns bastante influentes, rapidamente mudaram de perspectiva a partir do dia 25 de Abril de 1974, faça muitas pessoas acreditar na “revolução de um dia” - afinal, alguém que durante anos defendia o regime e de um dia para o outro aparece em público a defender a “ditadura do proletariado”, deve ter aprendido muito no espaço de apenas 24 horas!


Por outro lado, a herança do antigo regime, onde entre outras coisas encontrávamos um índice de analfabetismo acima dos 30%, uma falta gravíssima de acesso a infraestruturas básicas e a serviços essenciais e a existência de leis e de práticas sociais que pareciam mais adequadas ao século XVIII, era uma autêntica antecâmara para uma sociedade instável a partir do momento em que os seus instrumentos de repressão fossem abolidos. A maior consequência foi, com certeza, a forma absolutamente mirabolante com que alguns indivíduos no poder, sobretudo entre os militares, trataram o país durante 1975, quando qualquer um por muito ignorante que fosse afirmava convictamente que era marxista e sabia como se devia organizar o estado português.


E eis que hoje, passados 34 anos, a figura amarelada do Presidente da República se mostra preocupada com a ignorância dos jovens portugueses sobre a data. Notem, “sobre a data”, porque a forma como é tratado na comunicação social é essa, o 25 de Abril foi apenas uma data, uma revolução que se fez em 24 horas, o regime foi derrubado, não aconteceu nada de mau, toda a gente percebeu o seu papel e o país tornou-se numa democracia de um dia para o outro, é esta a visão mais ou menos oficial. Como poderiam então esperar que os miúdos do 9º ano soubessem o nome do primeiro PR eleito após o 25 de Abril?


Se o 25 de Abril é apenas um dia, porque razão está o Cavaco preocupado com a falta de conhecimentos? E a propósito, porque razão não é feita uma associação minimamente competente entre direitos que nós temos actualmente e o derrube do antigo regime? Porque razão nunca é afirmado que o Serviço Nacional de Saúde é uma consequência do 25 de Abril de 1974, tal como o foi a adesão à CEE e os milhares de milhões de fundos que daí vieram para modernizar as infraestruturas do país, bem como a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a liberdade de expressão e de associação e o direito de sairmos livremente do país?


Se de facto estão preocupados com esse tal “alheamento dos jovens em relação à política”, comecem por mostrar porque razão o 25 de Abril é uma data importante e não se limitem a repetir o discurso oco baseado em frases feitas como “dia da liberdade”, a democracia não tem valor nenhum se não for compreendida pelos cidadãos, e segundo me parece, esta é uma meta que ainda não foi atingida em Portugal.

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