19.5.06

60, o nosso património, a nossa identidade!

À primeira vista [e à vista desarmada, diga-se], parece ser um meio de transporte igual aos outros. Ao serviço da Carris, autocarro [moderno, diga-se, com honras de mostrador digital, menor emissão de gases e ar condicionado] como tantos outros….mas não, este não, pois este tem uma alma, uma vida e uma fauna própria! Meus caros, apresento-lhes a carreira número 60! Este tão vulgar e no entanto tão singular autocarro é um autêntico jardim zoológico socio-antropológico [sim, eu sei que o termo não existe, mas eu gosto de inovar], bastam 15 minutos a bordo daquela carreira e somos imersos numa panóplia de sons, visões e cheiros tão diversos como característicos das pessoas que o utilizam diariamente.
A carreira 60 cobre o percurso entre o Cemitério da Ajuda e o Martim Moniz, passando por locais como o Alto da Ajuda, Rua de D. Vasco, Boa Hora, Rua da Aliança Operária, Calvário, Alcântara, Conde Barão e Praça da Figueira. Mas não é só de locais que o percurso do 60 é feito, é de gentes, é de sensações, é de vivências, é de experiências únicas que a cidade de Lisboa nos pode oferecer através desta montra para a nossa identidade, representada tão modesta e humildemente por um autocarro com o número 60 na frente.
Experiências como a de ver uma mulher cigana a berrar pelo seu sobrinho para que este retirasse o seu carro da esquina de forma a que o autocarro pudesse entrar na rua, sob chamamentos tradicionais -”Olha que levas!!!!”- enquanto tranquilizava os restante passageiros. Experiências como ficar parado quase 30 minutos por causa de um eléctrico imobilizado à frente do autocarro. Experiências como o intenso e pitoresco odor de alguns dos passageiros e da sua “bagagem” que delicadamente pousam na superfície do veículo, mil aromas que vão desde o alho semi-mastigado que se liberta da cavidade bocal, àquele je ne sais quoi entranhado nas vestes do povo trabalhador [e não só…] para quem lavar a roupa e tomar banho são luxos desnecessários. Ou como a do artista cuja obra consiste na repetição da mesma sílaba dezenas de vezes a quem quer que seja que ele encontre ao seu lado.
Um passeio no 60 é mais do que um simples percurso pela Lisboa profunda, é uma visita etno-espiritual pela alma da cidade, pelos seus habitantes mais característicos que nunca serão esquecidos! Proponho assim a elevação da carreira 60 da Carris a Património Oral, Visual e Olfactivo da Humanidade, invente-se uma categoria para isto pois nós, Lisboetas, não podemos ficar parados e ver o nosso património a degradar-se, preservemos aquilo que é nosso, tenho dito!

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