14.6.08

Ireland says no

Depois de meses de antecipação, os eleitores irlandeses que foram às urnas votaram contra o Tratado de Lisboa, pondo fim a toda a vaga de optimismo que começou em Outubro de 2007 com o final da cimeira intergovernamental e se estendeu até Dezembro com a assinatura do tratado no Mosteiro dos Jerónimos.

Será que desta vez vão ser retiradas as lições correctas? A linha oficial indica que um país de 3 milhões de habitantes foi uma voz de bloqueio num bloco de 495 milhões, um retrocesso de um único país contra a vontade colectiva dos outros 26 membros da União. Infelizmente para a UE, trata-se de algo muito diferente. Quando em 2005, a França e a Holanda votaram “não” ao Tratado Constitucional, os líderes europeus abandonaram a terminologia e deram a entender que a linha seguida estava acabada, até ao ano de 2007, em que surge um novo tratado, muito mais pequeno e com um vocabulário mais conciliador para as mentes mais assustadas. Tal tratado era mais compacto e mais prático, não sendo assim necessário submetê-lo a referendo, uma vez que bastava a ratificação parlamentar. Diziam os líderes...

Uma vez que os parlamentos são democraticamente eleitos, qualquer votação que neles decorra é perfeitamente legal e legítima, certo? Assim pensaram os líderes europeus e, se em 2005 a participação dos eleitores era vista como um elemento essencial para dar uma legitimidade democrática ao Tratado Constitucional [veja-se o grande resultado a favor do TC que foi obtido em Espanha], em 2008 os cidadãos passaram de participantes essenciais no processo a opiniões mal informadas e/ou mal intencionadas com o objectivo de destruir o tratado. Que mudança notável em apenas três anos! Devemos mesmo ser indivíduos ingratos que não reconhecem o trabalho dos líderes.

Fazer depender o processo de ratificação dos parlamentos nacionais foi uma boa forma de dar uma aparência legal e legítima ao tratado, não há dúvida. Como já sabemos, é bastante fácil mudar radicalmente de posição quanto à participação dos cidadãos na ratificação de um tratado que é largamente idêntico ao Tratado Constitucional rejeitado em 2005. Contudo, e por mais bem intencionados que os líderes europeus sejam, a lei fundamental irlandesa exige submeter a ratificação do tratado a um referendo nacional.

O referendo realizou-se ontem, e o resultado final foi de 53,4% contra a ratificação e 46,6% a favor. Como seria de esperar, já existem reacções que lidam com o assunto da pior forma possível: que o resultado é inexplicável uma vez que a Irlanda é um dos países que mais beneficiou com a entrada na então CEE; que a maior parte das pessoas não sabia o que estava em causa; que os detractores do tratado foram levados ao engano pela campanha do “não”...aparentemente, não vão ser retiradas as lições correctas deste resultado. Pelo contrário, há quem fale em encostar os irlandeses à parede por serem um pequeno país a meter-se no caminho de toda uma União [segundo disse Jacques Barrot, vice-presidente da Comissão e comissário da justiça, liberdade e segurança], ou seja, mais uma vez a linha oficial da União a considerar que há uma separação clara entre a vontade dos eleitores irlandeses e a dos outros cidadãos da UE, algo como uma mancha negra num imenso oceano azul.

O que todos sabem mas ninguém admite é que os irlandeses não rejeitaram o tratado por “ingratidão”, não o rejeitaram por não saberem o que estava em causa nem tão pouco o fizeram por causa dos argumentos mais rebuscados utilizados por quem fazia campanha pelo “não” [como os que apontavam para a legalização do aborto e da eutanásia no país caso o tratado fosse ratificado], seria tão simples se assim fosse. O resultado irlandês foi apenas mais um de muitos sinais que a população da União Europeia sente um fosso enorme entre a sua cidadania e o funcionamento da União Europeia e das suas instituições. Apesar de tudo o que foi feito nas últimas décadas, a UE ainda não se soube apresentar como uma entidade sólida, capaz de unir os seus membros em torno de objectivos comuns e com a devida seriedade para os seus cidadãos não a verem como uma imensa máquina burocrática com dirigentes muito bem pagos e que pouco produzem. Os líderes e dirigentes podem não gostar disto [e não gostam, pois não o admitem em público], mas existe uma opinião comum nos 27 países da UE de que a organização não tem em conta os interesses dos cidadãos.

A consequência vê-se em referendos como o que se realizou ontem na Irlanda ou há três anos na França e na Holanda. Quando os cidadãos se sentem abandonados ou ignorados, a reacção mais lógica é a rejeição. Os eleitores irlandeses não votaram contra o tratado em si, nem contra a União Europeia, votaram contra a forma como a União Europeia trata os seus cidadãos.

Ainda não sabemos como vão os líderes europeus resolver este problema. Quando em 2001, os eleitores irlandeses rejeitaram o Tratado de Nice, dois aspectos fundamentais desse tratado foram renegociados de forma a que os irlandeses o vissem com melhores olhos [a garantia de respeito pela neutralidade da Irlanda e a aprovação parlamentar para a participação irlandesa em iniciativas de cooperação reforçada] e no ano seguinte, em novo referendo, o tratado foi aprovado. É possível que o procedimento se repita, mas depois de tudo o que foi feito para a redacção e assinatura do Tratado de Lisboa, a única conclusão que se pode tirar é que nenhum dos intervenientes quer eliminar o tratado. De uma forma ou de outra, as suas disposições vão ser adoptadas, só não sabemos como. Dificilmente vão ser retiradas as devidas ilações. Depois queixem-se que os cidadãos votam “contra a Europa”, como se a ideia de europeísta significasse estar sempre do lado dos líderes europeus.

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