Praxes em particular, tradições académicas em geral
Foi hoje divulgado pelo JN que cerca de um terço dos estudantes universitários de Coimbra considera que as praxes devem ser violentas, face a dois terços de indivíduos daquele universo que discorda. Perante reacções que consideram aquele resultado surpreendente, considero que não traduzem nada de estranho.
Os cerca de 32% que caem naquela categoria representam o que de pior existe nas universidades portuguesas. São aqueles para quem uma licenciatura de quatro dura sete ou oito, que a primeira palavra que surge associada ao conceito "Universidade" é "borga" e são os primeiros a vociferar protestos ruidosos, e por vezes violentos, contra as propinas sem compreender que sem as propinas, o seu estilo de vida não seria possível. São indivíduos cuja imagem transparece à sociedade como do "estudante típico" e que provocam a ira das chamadas "classes populares" que não tiveram oportunidade de prosseguir os seus estudos e que desenvolvem um desprezo irracional pelos estudantes universitários que parece crescer com a idade.
De facto, parece paradoxal encontrar criaturas com um grau de estupidez tão elevado numa instituição tão prestigiada como a Universidade de Coimbra. Parece, mas não é, e passo a explicar porquê. Ao longo das décadas, e sobretudo durante o século XX, a Universidade de Coimbra (muito mais do que a Universidade de Lisboa ou a Universidade do Porto) desenvolveu uma imagem de elitismo e de exclusividade, contornada por uma auréola romântica expressa pelos fados de Coimbra e pelas "tradições" académicas, como o traje, a praxe, o cortejo da queima das fitas e outras práticas.
Com a generalização do Ensino Superior após 1974 e a sua chegada a todos os distritos do país, a UC perdeu bastante e actualmente encontra-se abaixo das Universidades de Lisboa e Porto. Porém, isto apenas acentuou o orgulho dos "guardiões" de Coimbra, sobretudo quando vêem os seus emblemas e práticas serem adoptadas por virtualmente todas as Universidades, públicas e privadas, que existem em Portugal e todos os Institutos Politécnicos que passaram a disponibilizar praxes, trajes e queimas das fitas aos seus estudantes, em nome da "tradição académica".
Não sei ao certo a origem das chamadas "tradições académicas", mas como tudo o que é tradição, não têm razão de existir. Não têm razão de existir porque não são elementos fulcrais à definição da identidade estudantil, nem em Coimbra, nem em qualquer outra Universidade do país. Ou por acaso se um estudante não participar numa praxe, não envergar um traje académico ou tomar parte numa queima das fitas, isso torna-o num "membro de segunda" da comunidade estudantil?
Não têm razão de existir porque, no caso das praxes, além de não fazerem sentido, são um pretexto para a humilhação física e psicológica dos caloiros em alguns estabelecimentos, basta apenas procurar exemplos para fundamentar o que eu digo. Se em muitas instituições o objectivo não é esse, existe ainda um número elevado de casos onde as chamadas "práticas de boas-vindas" deram azo a "práticas de estupidez" por parte dos seus executantes.
Não têm razão de existir porque qualquer prática que tenha sido realizada há 150 anos atrás por um pequeno grupo em determinado local e que tenha sido repetida nos anos subsequentes pode ser elevada a "tradição" sem que exista motivo para isso. Eu imagino que quando muitas "tradições" começaram, os indivíduos que as puseram em prática não tinham como objectivo deixar semelhante "legado" às gerações futuras.
E finalmente, não têm razão de existir porque uma Universidade é uma instituição de ensino e de aprendizagem, não de práticas semi-folclóricas que ao abrigo do rótulo "tradição" expõem toda uma mentalidade retrógrada e sem sentido que acaba por servir de pretexto a episódios absolutamente ridículos que em nada dignificam o nome da Universidade e dos seus estudantes.
PS - Há alguns anos, uma amiga japonesa perguntou-me se era mesmo verdade o que ela tinha lido num livro sobre Portugal, onde constava que os estudantes universitários portugueses usavam uma capa preta que, no ano de conclusão da licenciatura, deveria ser rasgada pela/o namorada/o, pelos amigos, pelos pais e professores. A minha resposta foi "Só em Coimbra...", estava errado?
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